Spotify é irresponsável

O problema é que desinformação a respeito de vacinas mantém a pandemia viva e, por fim, mata
Foto: Ilustração

A controvérsia envolvendo o Spotify e desinformação pode parecer com os muitos debates que temos tido envolvendo fake news e as redes sociais. Mas não é a mesma coisa. Porque o que o Spotify está fazendo no mundo em língua inglesa é, por um ângulo, muito mais grave. É uma decisão ativa, pelo comando da empresa, de financiar e promover quem desinforma. Não é um algoritmo misterioso que leva a informação incorreta às pessoas. É a empresa Spotify que contratou com exclusividade, por US$ 100 milhões, o podcast The Joe Rogan Experience. E que empurra para que ouçam este programa todos que acessam o sistema nos EUA. Este é um debate imenso, que tem por fundo uma deturpação das ideias de liberalismo e, por consequência, da democracia liberal.

Como não é um debate simples, cabe destrinchar do que se trata. Joe Rogan faz o estilo homem comum. Não é particularmente informado, não é particularmente culto, mas é bom de conversa e, por isso, popular. Seus entrevistados, com muita frequência, estão entre os mais radicais conspiracionistas. Ataques a vacinas e promoção de remédios aleatórios para Covid-19 fazem parte do jogo. Mas Rogan não precisa do Spotify — antes de assinar um contrato de exclusividade, já tinha uma audiência de 9 milhões de pessoas por episódio, cada episódio uma entrevista. No horário nobre, os três principais canais de notícias da TV a cabo americana angariam 5 milhões de pessoas. Por mês.

Sim: os três maiores canais de notícias pagos dos EUA têm, num mês de horário nobre, pouco mais da metade da audiência que Rogan captura num único episódio.

O raciocínio do Spotify, do ponto de vista dos negócios, é muito claro. Um podcast com audiência neste nível traz novos assinantes. Quem ouvia de graça, para continuar a ouvir agora, tem de pagar a mensalidade do Spotify. Então, como saiu caro ter a exclusividade — US$ 100 milhões não é pouco —, a plataforma promove ativamente sua estrela. Quem entra no app Spotify, nos Estados Unidos, vê logo na primeira tela quando tem episódio novo.

Se Rogan deixar o Spotify, talvez perca algum dinheiro — mas seguirá muitas vezes milionário e com sua audiência gigantesca. Já o Spotify perde um atrativo importante para milhões de assinantes. Então, quando o quarteto Crosby, Stills, Nash & Young deixa o Spotify em protesto e a cantora Joni Mitchell os acompanha, os bons artistas cujos sucessos já ocorreram muitas décadas no passado estão perdendo um dinheiro relevante. Já o Spotify não perde audiência ou dinheiro. É comparar milhares de dólares com dezenas de milhões.

O problema não é financeiro. O problema é que desinformação a respeito de vacinas mantém a pandemia viva e, por fim, mata.

De alguma forma, nas últimas décadas, se criou esta ilusão de que, em sua defesa dos direitos individuais, a ideologia que dá sustento à democracia é uma de egoísmo onde só o dinheiro conta. Mas não é. Liberdade individual é importante para garantir que ninguém será oprimido. Nem pelo Estado, nem por entidades privadas. E direitos individuais servem para proteger quem é pequeno de quem é grande. Não são salvo-conduto para quem é grande passar por cima do pequeno.

Empresas devem fazer dinheiro. Mas a maneira como encaram sua responsabilidade com a sociedade diz muito. Os Joe Rogans da vida não deixarão de existir sem um Spotify. Mas, ao escolher entre uma estrela que desinforma e as outras muitas que ajudam num momento em que pessoas estão morrendo, o Spotify passa uma mensagem clara.

Dinheiro é importante. A vida de seus clientes não é. Quando se está no negócio da informação, esta escolha indica que os executivos não entenderam o que são democracias. (Pedro Doria/O Globo)

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