O desmonte das ferramentas anticorrupção

Sem a perspectiva da punição, os responsáveis por saquear os cofres públicos não têm o menor estímulo para deixar de roubar, nem para colaborar com as autoridades caso sejam pegos
Rio de Janeiro - Em mais um desdobramento da Operação Lava Jato, a Polícia Federal cumpre oito mandados de prisão contra pessoas ligadas à cúpula do transporte rodoviário no Rio de Janeiro, na operação batizada de Ponto Final (Tânia Rêgo/Agência Brasil)

Com a Operação Lava Jato ainda em andamento, vários de seus protagonistas, como o ex-juiz Sergio Moro e os procuradores da força-tarefa do Ministério Público Federal em Curitiba, alertavam para a possível repetição, no Brasil, da reação dos corruptos ocorrida na Itália do pós-Mãos Limpas. O alerta, no entanto, não impediu que quase todo o roteiro empregado pelos italianos fosse colocado em prática também aqui. Parte dessa reação consistia em alterar leis e jurisprudência para impedir que surgissem novas operações com o mesmo sucesso, e isso exige tirar das mãos das autoridades uma série de ferramentas com as quais elas podem trabalhar para dificultar a vida dos ladrões do dinheiro público.

Dias atrás, a Gazeta do Povo lembrou o fim de quatro dessas ferramentas anticorrupção – e as ameaças que pairam sobre outras duas – que ajudaram a Lava Jato a desmontar o maior esquema de corrupção da história do Brasil, uma fraude contra a democracia brasileira em que o petismo arquitetou a pilhagem de empresas estatais, especialmente a Petrobras, para, com a ajuda de partidos aliados e empreiteiras, perpetuar seu projeto de poder. Nos casos da prisão após condenação em segunda instância, do fim da condução coercitiva e do envio de processos à Justiça Eleitoral quando as investigações de corrupção envolvem a prática de caixa dois, a decisão coube ao Supremo Tribunal Federal, envolvendo, inclusive, reversão de entendimentos recentemente reestabelecidos.

Sem a perspectiva da punição, os responsáveis por saquear os cofres públicos não têm o menor estímulo para deixar de roubar, nem para colaborar com as autoridades caso sejam pegos.

O fim da prisão após condenação em segunda instância é, talvez, a maior dessas perdas. A retomada, em 2019, do entendimento que vigorou no país apenas entre 2009 e 2016 garantiu que a possibilidade de um corrupto ou corruptor acabar na cadeia se reduza ao mínimo, já que o cipoal processual brasileiro, com seus infinitos recursos, permite alongar os processos por décadas, passando por até quatro instâncias, incluídas aí o STJ e o STF. Esta é uma anomalia que não se observa em nenhuma democracia madura do ocidente – há países em que a prisão ocorre já com a condenação na primeira instância –, entre outros motivos porque, sem a perspectiva da punição, os responsáveis por saquear os cofres públicos não têm o menor estímulo para deixar de roubar, nem para colaborar com as autoridades caso sejam pegos. E a necessidade do trânsito em julgado nas quatro instâncias para o início da pena de prisão também não faz sentido quando se considera que, no ordenamento jurídico brasileiro, a análise da culpa – se o acusado é realmente culpado ou não – termina na segunda instância; aos tribunais superiores cabe apenas analisar questões processuais. Além disso, o marco da segunda instância já garante que haja um colegiado analisando e revisando a decisão do juiz de primeira instância, uma garantia adicional para os acusados.

E o que dizer quando uma das ferramentas anticorrupção é desmontada pelos próprios responsáveis em combater a corrupção? Foi o que ocorreu com o extremamente bem-sucedido modelo de forças-tarefa, que o atual procurador-geral da República, Augusto Aras, aboliu, por preferir concentrar todas as investigações de corrupção em um grupo específico. Com isso, perdeu-se a dedicação exclusiva que permitia aos investigadores aprofundar-se nos detalhes de esquemas que se tornam cada vez mais intrincados e ramificados, como foi o petrolão. E, com a recentemente anunciada recondução de Aras para um novo biênio à frente da Procuradoria-Geral da República, é improvável que esta perda seja revertida; seria preciso que um novo procurador-geral tomasse a iniciativa de reativar as forças-tarefa.

Ao menos parte dessa demolição poderia ser desfeita se o parlamento estivesse interessado em aprimorar o combate à corrupção, em vez de aprovar leis que o dificultam, como ocorreu com a Lei de Abuso de Autoridade e ocorre com projetos de lei sobre delações premiadas e lavagem de dinheiro. Propostas de emenda à Constituição que garantiriam o início do cumprimento da pena após segunda instância dormem nas gavetas do Congresso. Durante as campanhas para a presidência da Câmara e do Senado, os poucos deputados e senadores empenhados na luta contra a ladroagem não foram suficientes para conseguir arrancar dos candidatos um compromisso com o tema, sinal de que caberá ao eleitor trazer o assunto para a lista de prioridades. É preciso estar atento às ações e votos dos congressistas, muitos dos quais voltarão a pedir o voto do brasileiro em 2022; eleger um Legislativo autenticamente comprometido com a criação de um arcabouço legal que ajude o combate à corrupção é essencial para trazer de volta aquela esperança que a Lava Jato deu ao país e que hoje anda desaparecida graças aos ventos que vêm de Brasília. (Gazeta do Povo)

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