O castanhal do Cinzento

Histórico geólogo brasileiro fala sobre o trabalho em equipe durante descoberta de Carajás

Muitas vezes a sequência de um projeto, ou a própria história do país, é mudada a partir de fatos que, isoladamente, podem ser considerados como insignificantes. O desenrolar da história de Carajás não poderia ser diferente…

Há quase um mês estávamos isolados na ilha de São Francisco no Xingu, nos aborrecendo com a solidão e com a falta do que fazer. Distraíamo-nos como capatazes, supervisionando a ampliação da pequena pista de pouso do seringal e a construção do acampamento, que, quando pronto, praticamente não chegou a ser utilizado, pois – como veremos – nos mudaríamos logo para o vale do Itacaiúnas. Também gastávamos o tempo com pescarias e com visitas aos moradores da ilha, quase todos os seringueiros, dos quais ouvíamos boas histórias, quase sempre relatando ataques dos índios caiapós ou dos assurinís, em um passado não muito distante. Quando não havia mesmo nada para fazer, apenas caminhávamos pela pista de pouso para esfriar a cabeça e espantar os piuns…

Felizmente, nos primeiros dias de julho de 1967, alguns acontecimentos fizeram com que nossa atividade de exploração geológica tivesse início. Tolbert chegara com as fotografias do Projeto Araguaia, colocadas à disposição dos usuários pelo DNPM naqueles dias. Logo na primeira observação das imagens, dois fatos destacaram-se: a existência de várias clareiras, algumas com grandes dimensões, e a inadequada situação da nossa base de apoio, rodeada de terrenos granito-gnáissicos, distante das serras bem orientadas do leste.

A origem das clareiras foi motivo de acaloradas discussões. Deve ser lembrado que a atividade econômica na região estava restrita à exploração de seringueiras no vale do Xingu e de castanheiras ao longo do Vale do Itacaiúnas e afluentes. A ocupação humana era muito rarefeita, junto às sedes dos seringais ou dos castanhais, na beira dos rios. Tolbert defendia que as clareiras tinham sido abertas pelos índios. Entretanto, a hipótese tinha fraca sustentação, pois se fossem de antigas roças, não deveriam estar situadas no topo de platôs e, além disso, a floresta naturalmente já teria recomposto a sua cobertura. Também foi notado que algumas clareiras acidentalmente identificadas durante os primeiros voos de reconhecimento, em maio, continuavam com a mesma forma da fotografia, tomada alguns anos atrás, sem nenhum avanço da floresta. Sem chegarmos a uma resposta definitiva, concordamos que a natureza do solo, resultante da rocha subjacente, deveria ser responsável pela existência da vegetação arbustiva de cerrado. Estava lançado o primeiro desafio do nosso programa…

Quanto à situação do nosso acampamento, teríamos que tomar alguma providência, pois os helicópteros, que iríamos utilizar, tinham autonomia de duas horas, permitindo o reconhecimento geológico num raio de apenas 100 quilômetros, sem poder atingir as serras situadas a leste. O “Brazilian Exploration Program – BEP” tinha por objetivo a busca de depósitos de minério de manganês e por isso buscávamos como ambiente de trabalho as serras orientadas, possivelmente indicativas de sequências vulcano-sedimentares. Nosso modelo era a jazida de manganês de Serra do Navio, no Amapá, e pensávamos que a descoberta da CODIM, na Serra do Sereno, nas proximidades de Marabá, também estava associada a esse tipo de sequência. Tínhamos o primeiro problema para resolver…

Tolbert logo retornou ao Rio, e alguns dias depois, com a chegada dos dois “modernos” e “possantes” helicópteros “BELL-G”, da HELITEC, recebemos a visita do engenheiro Francisco Sayão Lobato, consultor da Meridional para questões operacionais, particularmente envolvendo o uso do helicóptero. Sayão, juntamente com o geólogo João Ritter – que fazia parte da nossa equipe -, tinha sido responsável pela primeira utilização de helicóptero na Amazônia em serviços de reconhecimento geológico, no mapeamento da Província Estanífera de Rondônia, um ano antes. A Petrobras também utilizava o apoio do helicóptero, mas apenas para suporte operacional.

Dada a necessidade de mudarmos nossa base para leste, discutimos com Sayão a possibilidade de utilizarmos a pista dos índios caiapós na Aldeia Xicrins, situada no rio Cateté, afluente do alto Itacaiúnas. Essa pista também havia sido identificada acidentalmente durante o reconhecimento de maio, pois fica exatamente sob a linha de voo entre Marabá e São Félix do Xingu. Numa bela manhã amazônica de julho, partimos num velho monomotor “Beaver” para verificar a possibilidade de utilização dessa nova base.

Passados os primeiros momentos de espanto, pois para a maioria da equipe era o primeiro contato com índios em seu estado natural, conseguimos com o padre francês que dava apoio à aldeia e com o funcionário do antigo “SPI – Serviço de Proteção ao Índio”, autorização para usarmos a pista e construirmos nosso acampamento nas suas proximidades. Quase toda tribo estava na floresta cumprindo rituais de caça; apenas alguns jovens estavam na aldeia. A conversa com um desses jovens, que falava um pouco de português, novamente mudaria o rumo dos acontecimentos.

Antiga aldeia dos Xicrins, no rio Cateté

Ele nos contou que acabara de chegar de um castanhal rio abaixo, onde havia trabalhado na abertura de uma pista de pouso melhor que a da aldeia. Ficamos entusiasmados com a boa notícia, pois pela descrição do jovem índio o castanhal ficava mais próximo das serras e, além disso, seria melhor para todos, principalmente para os índios, que não ficássemos na aldeia. Agradecemos e partimos no velho “Beaver”.

Com alguns minutos de voo, logo após à mudança de rumo do Itacaiúnas para nordeste, avistamos a nossa pista. Era bom demais para acreditar: lá estava ela, novinha e toda empiçarrada, à nossa disposição. Senti-me como Willian Holden ao avistar lá embaixo as “Pontes de Toko-Ri” – quem se lembra?…

O piloto Leno nos garantiu que dava para pousar, como realmente deu… Entretanto, a beleza vista dos céus não correspondia à realidade da terra. O piso, embora empiçarrado, era bastante irregular, e o monomotor sacolejou bastante para conseguir parar nos seus pouco mais que 200 metros. Logo apareceu o capataz do castanhal, assustado com a invasão. Depois dos cumprimentos e de sabermos que estávamos no “Castanhal do Cinzento”, pois a sede ficava na confluência do rio homônimo com o Itacaiúnas, perguntei:

– Nenhum piloto reclamou dessa pista, seu piso é muito irregular?…

– Não dotô!… Esse foi o primeiro avião que posôaqui… – respondeu com simplicidade.

Sem que soubéssemos e sem sermos convidados, acabávamos de inaugurar a pista do Castanhal do Cinzento.

Pouso inaugural na pista do Castanhal do Cinzento

Apesar da sua cordialidade, o capataz nos informou que nada poderia fazer, e que a autorização para utilizar a pista teria que ser obtida com seu proprietário, Demóstenes de Azevedo Filho – o Demostino -, que residia em Marabá. Esperançosos, mas inquietos, retornamos para nossa base no Xingu.

Na semana seguinte, Tolbert retornou ao acampamento do Xingu, entusiasmado com o relato do Sayão a respeito do novo local para o acampamento. Num sábado pela manhã, partimos no Cessninha do piloto Adão para Marabá, na tentativa de obtermos a autorização para utilizar a pista do Cinzento. Infelizmente, seu proprietário não estava na cidade e a viagem foi perdida.

Toda Marabá estava em festa, em pleno “verão amazônico”, e boa parte de sua população estava na grande ilha de areia – totalmente submersa durante as cheias -, curtindo a praia defronte a velha Marabá.

Alguns dias depois, Tolbert, Ritter e Adão retornaram a Marabá, mas a reunião com o Demostino foi desastrosa. Além de não permitir a nossa entrada, mostrando o seu “38”, fez várias ameaças, garantindo que daria ordem a seu capataz para atirar em quem pousasse no Cinzento. Afirmou que a CODIM (Union Carbide) também já tentara obter essa autorização e que companhia nenhuma iria entrar em seu castanhal.

Tolbert retornou ao Xingu revoltado e Adão, com a sua simplicidade e vontade de ajudar, ofereceu para dar uns tiros se necessário fosse. As coisas não caminhavam bem e já estávamos reconsiderando a possibilidade de utilizar a pista dos Xicrins.

Dois dias depois, Tolbert logo cedo me conversou:

– Breno… Vai com o Adão a Marabá e faz qualquer negócio para obter a autorização. Aquela pista é muito importante para o nosso projeto.

Tudo bem… Como vim a aprender mais tarde com o piloto de helicóptero Walmir Sayão – de outras histórias -, “manda quem pode e obedece quem tem juízo”. Só não entendia porque não os havia acompanhado na viagem anterior, quando as coisas eram mais fáceis.

Chegamos a Marabá logo depois do almoço. Fui recebido pelo Demostino com certa amabilidade. Aproveitando o ambiente e sob o pretexto do calor da cidade, convidei-o para uma cerveja na pensão da saudosa Hilda Mutran – pelo menos já conseguia alguma vantagem com o campo neutro.

Vista de Marabá, em julho de 1967, quando ainda não se sonhava com Carajás

Depois de algum papo furado, fomos chegando naturalmente ao tema principal. Nessa altura o ambiente já era de pura cordialidade e, até o Adão já havia esquecido sua vontade de dar uns tirinhos. Entretanto, Demostino expôs suas razões, bastante aceitáveis, para que ninguém entrasse lá. Temia que a entrada da companhia complicasse a posse de suas terras e tumultuasse a vida de seus catadores de castanha.

Apesar do avanço no relacionamento, o resultado continuava sendo nulo. Eu tinha uma carta na manga, que poderia ajudar ou, então, enterrar totalmente as nossas pretensões. Na ICOMI, em Serra do Navio, tornara-me amigo de Luiz Ortiz Vergolino, engenheiro da Estrada de Ferro do Amapá, que fazia parte da turma das “peladas” dos fins de tarde. Através dele tive as primeiras referências de Marabá, onde seu pai inclusive fora prefeito. A menção dessa amizade poderia ajudar ou atrapalhar… Depois de várias cervejas, quando não havia mais esperança de obter a autorização, como que me despedindo, disse:

– É uma pena!… O meu amigo Ortiz falava tão bem de Marabá, que eu sonhava em vir trabalhar aqui…

Com um olhar espantado, Demostino perguntou:

– Que Ortiz?…

– O José Luiz Ortiz Vergolino, que o pai foi prefeito.

Demostino abriu um grande sorriso e foi logo dizendo:

– O Ortiz foi meu amigo de infância. Amigo dele também é meu amigo. Amanhã cedo vou com vocês ao castanhal, para dar a autorização ao meu capataz.

Chegando ao Cinzento, sob neblina, para determinar a autorização 

Na manhã seguinte, na companhia de seu dono retornamos à sonhada pista. A neblina do vale do Itacaiúnas começava a transformar-se em pequenas nuvens, mas pudemos vislumbrá-la, mais desejada do que nunca.

O pouso foi mais tranquilo e acertamos a utilização da pista mediante um razoável aluguel. No final da tarde retornamos vitoriosos à ilha de São Francisco, que já começava a deixar de ser a nossa base de apoio.

O Castanhal do Cinzento foi fundamental para a descoberta de Carajás pela Meridional (United States Steel). Enquanto a CODIM transferia sua base para Altamira, afastando-se de Carajás, nós nos instalávamos no seu coração, e sem que ainda o soubéssemos, junto às clareiras das jazidas de ferro, muito próximo da jazida de cobre-ouro do Salobo e não longe das jazidas de cobre-ouro do complexo Bahia-Alemão e, de manganês, de Buritirama e do Azul.

Demóstenes Azevedo Filho faleceu em acidente rodoviário na estrada entre Marabá e a Belém-Brasília, no início da década de 70. O Castanhal do Cinzento, hoje, é um local abandonado, habitado apenas pelos fantasmas e pelas lembranças dos que lá iniciaram o que viria a ser Carajás.

Em pouco tempo, Cinzento se transformou na “capital” de Carajás 

Entre agosto e novembro de 1967, quando a base foi transferida para a clareira N1 de Serra Norte, foi a “capital” de Carajás. De lá partiram as equipes para os primeiros reconhecimentos geológicos da região. Lá se consolidou a amizade da equipe: geólogos, pilotos, mecânicos, cozinheiros e mateiros, que constituíram o primeiro grupo, que não chegava a 20 pessoas. Lá nos acostumamos com os banhos de rio nos fins de tarde, a dormir em redes e a bater papo à noite até o sono chegar, para afastar a solidão e as saudades da família. O Castanhal do Cinzento vive a sua solidão, e quase ninguém se lembra de sua existência…

Breno Santos (Gazeta Carajás)

Fonte/Créditos: Publicada originalmente na Revista Brasil Mineral e no livro Pelas Pedras do Caminho Mineral, da editora Signus

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