Bolsonaro encara a própria obra

O presidente se fiou muito na expectativa de que medidas improvisadas amenizariam o trauma da pandemia
O presidente Jair Bolsonaro, durante transmissão ao vivo — Foto: Reprodução/YouTube

Jair Bolsonaro está nervoso. O que atormenta o presidente não é só chegar às urnas em desvantagem, sob risco considerável de ser derrotado em primeiro turno, duas circunstâncias inéditas para um presidente que disputa a reeleição no cargo.

Tampouco a irritação advém apenas de ele saber ser estreita, quiçá inexistente, a margem que terá para contestar, com sucesso, o resultado das urnas, caso se confirme adverso para ele.

Por fim, não é a condição de pai cioso ou marido devotado que tira o sono de Bolsonaro diante da divulgação de notícias como a quebra de sigilo de seu ajudante de ordens, o tenente-coronel Mauro Cid, ou da compra de 51 imóveis por ele e por familiares ao longo das últimas duas décadas em parte em dinheiro vivo.

O que atormenta Bolsonaro e o deixa à flor da pele na última semana, à beira da autocombustão, é a proximidade cada vez maior de ser confrontado com a obra de seu governo e de sua vida. Para esse acerto de contas, as pesquisas não são exatamente auspiciosas.

O Datafolha divulgado nesta quinta-feira não permite nem cravar se haverá segundo turno. Na verdade, depois de uma semana de sprint da campanha lulista em busca de virar votos e mostrar que Lula reúne em torno de si uma frente ampla de apoios, a estagnação nos índices foi um balde de água fria antes do debate da TV Globo.

A ideia do Q.G. petista era ir para o confronto decisivo contra Bolsonaro com um indicativo mais claro de que a fatura seria liquidada neste domingo.

Escrevo antes do debate, portanto sem saber o que resultará desse tudo ou nada a que Bolsonaro e Lula pretendiam se lançar. Mas as pesquisas mostram que, ainda que o presidente consiga empurrar a definição para o fim de outubro, sua rejeição é uma muralha difícil de transpor.

A campanha do presidente se fiou muito na expectativa de que medidas econômicas improvisadas, para tentar derrubar a inflação na marra e levar mais dinheiro ao bolso do eleitor mais pobre, amenizariam o trauma da pandemia na vida das pessoas. Mas isso não ocorreu.

As cenas diárias, ao longo de 2020 e 2021, em que o presidente boicotava as medidas sanitárias, atrasava os acordos para a compra de vacinas, zombava do vírus, tirava máscara de crianças, propagandeava medicamentos sabidamente ineficazes, provocava aglomerações apenas para se exibir e debochava dos sintomas de uma doença que matou quase 700 mil brasileiros não eram nem foram possíveis de apagar com PEC Kamikaze alguma.

Além disso, a suspensão do Auxílio Emergencial no auge da pandemia, em janeiro de 2021, criou nos mais pobres o temor de que os R$ 600 do Auxílio Brasil, também eles provisórios e não confirmados no Orçamento de 2023, lhes serão tirados tão logo se fechem as urnas.

O presidente pouco ou nada fez para suavizar a própria imagem ou para se desculpar da maneira insensível, para dizer o mínimo, como se comportou na maior crise da vida de gerações de brasileiros. Reafirmou o que considera terem sido medidas e afirmações corretas, muitas vezes de forma agressiva, como no debate do pool de veículos de imprensa no fim de agosto.

Caso haja segundo turno, Bolsonaro terá de contar com a manutenção das recentes boas notícias econômicas, mas continuará exposto à própria obra. E ela não é composta só pela gestão da pandemia, mas também pelos ataques às mulheres, à imprensa e às minorias, pelas denúncias de corrupção, pecha que ele tenta imputar ao adversário, mas que também assombra a ele e a seu clã de políticos.

O que tira o sono e o humor de Bolsonaro é esse encontro com o espelho, no domingo ou mais adiante. (Vera Magalhães/O Globo)

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