No Pará, prefeito garimpeiro convoca população a resistir

Itaituba é um exemplo de duas realidades paralelas na Amazônia: a da atual ofensiva do governo federal contra o garimpo e o cotidiano das prefeituras e parlamentos municipais dominados por mineradores, madeireiros, grileiros e comerciantes que vivem à custa das atividades de destruição da floresta
Créditos: Reprodução

Itaituba, o município mais garimpeiro do Brasil, entrou em estado de alerta. Com a denúncia do genocídio Yanomami e a ofensiva do governo federal na terra indígena, narrada dia após dia pela imprensa brasileira e internacional com imagens fortes, uma parcela significativa da população da cidade do sudoeste paraense se sentiu atacada em sua identidade.

Quem puxa o movimento de reação é o prefeito Valmir Climaco (MDB), conhecido por sua militância pró-garimpo. “Não é hora de parar o garimpo!”, defendeu em reunião pública convocada por ele na segunda-feira, 13 de fevereiro. Para se descolar das imagens dos indígenas morrendo por desnutrição provocada em grande parte pela mineração, Climaco tem uma estratégia que deixou explícita ao afirmar em entrevista a SUMAÚMA: “90% dos garimpos do Brasil estão em terra indígena ou parque ambiental e os outros 10% em Itaituba”. Em resumo: para o prefeito garimpeiro, todo garimpo é ilegal, menos o do seu município.

É esse o argumento que o prefeito pretende utilizar para conseguir o apoio do colega de partido Helder Barbalho (MDB). O mandatário do Pará, por sua vez, tem buscado um equilíbrio difícil entre a imagem de “governador verde” que exibe em sua atuação internacional e as costuras internas em um estado que lidera o garimpo na Amazônia, com prefeituras e parlamentos municipais tomados por defensores da mineração, da madeira e da grilagem de terras.

Em municípios amazônicos, chamar alguém de “garimpeiro” é elogioso. Orgulhosamente intitulada de “cidade pepita”, Itaituba já abre o primeiro verso de seu hino cantando: “Os garimpos, as praias, a fonte”. Parte do comércio é dedicada a uma atividade que a maioria conecta com a livre iniciativa e o pioneirismo. “Deixa o pai de família trabalhar” é uma defesa recorrente quando há críticas ao garimpo.

A narrativa do prefeito, porém, é perturbada pela realidade literalmente encarnada em lideranças indígenas como Alessandra Korap, ameaçada de morte por sua luta contra a mineração no território Munduruku. “Dizer que na nossa região não tem indígena é mentira”, diz. “No território de Sawré Muybu [Munduruku] já existiam muitos ancestrais mesmo antes da entrada dos pariwat [não indígena ou inimigo]. Há pelo menos 13 aldeias indígenas no município, e muitas são vítimas do garimpo ilegal. Na cidade [Itaituba], inclusive, existem duas aldeias. Itaituba cresceu e tomou conta das aldeias, e elas ficaram lá, porque não tinham como se deslocar.”

Segundo dados do Instituto Socioambiental (ISA), o município tem duas terras indígenas homologadas, a Terra Indígena Andirá-Marau, ocupada pelo povo Sateré-Mawé, e a Terra Indígena Munduruku – nesta última apenas 2%, o equivalente a pouco mais de 49 mil hectares, estão em Itaituba; os demais 98% ficam em Jacareacanga. Há outras áreas ocupadas há séculos pelos Munduruku em processo de identificação ou reconhecimento.

De 2010 a 2020, segundo o MapBiomas, o garimpo em terras indígenas aumentou 495% no Brasil: 9,3% afetam diretamente os povos indígenas. Em extensão territorial, as maiores vítimas são os Kayapó, com 7.602 hectares invadidos pelo garimpo, seguido pelos Munduruku, com 1.592 hectares, e, em terceiro, os Yanomami, com 414 hectares. As unidades de conservação também sofrem com a ação do garimpo. A Área de Proteção Ambiental do Tapajós é a mais afetada, com 34.740 hectares do território ameaçado, seguido pela Flona do Amanã, com 4.150 hectares, e, em terceiro, o Parque Nacional do Rio Novo, com 1.752 hectares invadidos por garimpeiros. Todas essas unidades de conservação estão ou têm parte do território localizado na “cidade pepita”.

Itaituba é o município brasileiro que mais concentra a atividade da mineração, seja ela industrial ou de garimpo. Os outros quatro municípios que lideram o ranking também estão incrustados no Pará: Jacareacanga (9.450 hectares), Parauapebas (7.578 hectares), Oriximiná (6.278 hectares) e São Félix do Xingu (6.212 hectares). No total, 44.890 hectares do município de Itaituba são destinados à atividade, mas, ao contrário de Oriximiná, que tem uma das maiores mineradoras de bauxita do mundo, numa larga produção industrial de alto impacto, em Itaituba 95% são destinados ao garimpo, que tem outro tipo de ocupação e extração.

Tanto a mineração industrial quanto o garimpo produzem graves impactos ambientais e humanos, mas é possível compreender a revolta de garimpeiros ao ver grandes corporações transnacionais atuarem legalmente dentro da Amazônia, produzindo danos monumentais, mas sendo pouco ou nada perturbadas pelo governo. As leis que regulam a mineração ainda precisam ser muito mais efetivas.

Muito antes de Itaituba se tornar a “cidade pepita”, toda a região já era ocupada há mais de um século por comunidades tradicionais ribeirinhas, descendentes de seringueiros que migraram para lá no século 19. E, muito antes dos ribeirinhos, havia a milenar presença indígena, a ponto de o vale do Tapajós ser conhecido pelos viajantes europeus como Mundurukânia. Hoje, tanto os povos indígenas como as comunidades tradicionais ocupam frações ilhadas e desconectadas entre si. É o caso das seis terras indígenas com frações significativas no município, e de Montanha e Mangabal, a única comunidade tradicional com território reconhecido.

Ao contrário de outras regiões do Pará e da Amazônia, onde as comunidades tradicionais da floresta precisam lutar contra grandes mineradoras transnacionais, em municípios como Itaituba, o envolvimento da população não indígena da cidade com o garimpo é mais capilarizado e estrutura a própria identidade. O prefeito de Itaituba se orgulha da quantidade de licenças que concede no município e afirma que a fiscalização é “rigorosa”. No último dia 9 de fevereiro, a Secretaria de Meio Ambiente e Mineração de Itaituba liberou 10 licenças de operação para pessoas físicas e jurídicas que têm, agora, a permissão para explorar ouro e cassiterita no chão da floresta. Ao juntar meio ambiente e mineração, o próprio nome da secretaria é um indicativo de como o município entende sua atuação.

Enquanto prefeito, vereadores, associações de garimpeiros e comerciantes se reuniam no auditório da Secretaria de Educação do município para debater estratégias de proteção ao garimpo, a Polícia Federal seguia numa operação com o objetivo de destruir a infraestrutura dos garimpeiros. Desde 7 de fevereiro, 15 municípios do Pará estão sob estado de emergência ambiental: Altamira, Anapu, São Félix do Xingu, Pacajá, Novo Progresso, Portel, Senador José Porfírio, Novo Repartimento, Uruará, Rurópolis, Placas, Trairão, Jacareacanga, Medicilândia e Itaituba. A medida, que inicialmente terá duração de 180 dias, pretende apertar o cerco contra crimes ambientais em regiões consideradas críticas.

É como se fossem duas – ou mais – realidades paralelas. Enquanto a Polícia Federal expedia mandados de prisão, um vídeo gravado pelo prefeito circulava na redes sociais pedindo abertamente aos garimpeiros para não pararem com a atividade: “Quero dizer a todos os garimpeiros do nosso município [Itaituba], que continuem o seu trabalho, fazendo uns abatedouros para sair água limpa para os igarapés, que o governador com certeza vai regularizar esse pessoal”.

O prefeito já compreendeu que há uma mágica com o adjetivo que costuma acompanhar as denúncias de garimpo: “ilegal”. Se há um garimpo “ilegal”, então há o “legal”. Sua missão é mostrar que o de Itaituba é “legal”. Assim, Climaco está empenhado em “legalizar” o garimpo de Itaituba. Mas só pode fazê-lo ignorando a presença indígena.

Para Alessandra Korap, o discurso do prefeito é uma tentativa explícita de apagamento histórico. “Isso é para nos apagar, para dizer que não existimos. Nós existimos sim. Tem aldeia que só fala Munduruku. Tem história Munduruku e a pessoa vem do Ceará dizer que nós não existimos?”, revolta-se. “E digo mais: esse discurso de querer legalizar garimpo é querer legalizar a nossa morte.”

Quase 94% dos garimpos do Brasil estão na Amazônia. Para Alessandra, como para grande parte das lideranças indígenas, é impossível existir mineração sem destruição ambiental e humana. “O rio não para, os peixes não ficam amarrados, as caças não ficam amarradas, mesmo que um garimpo seja longe de uma terra indígena, ele afeta a todos, porque mata o rio”, diz. “Não importa se ele está ou não dentro do território. Um garimpo que está no Alto e Médio Tapajós afeta as pessoas em Santarém, que é bem distante, mas [onde o rio já] está contaminado pelo mercúrio. Agora imagine quem é morador ou a população que vive do lado desses garimpeiros?”

A líder Munduruku garante também que haverá resistência: “A gente sabe o que o garimpo traz para a gente. Traz doença, traz prostituição, traz droga, lama e muita água suja. Se o governador e o presidente aceitarem a demanda desse pessoal, de quererem a nossa morte, a gente não vai aceitar e a gente vai brigar. E quero deixar bem claro, para o prefeito e para qualquer pessoa que quiser legalizar o garimpo dentro das nossas terras, que a gente vai enfrentar, porque não vamos entregar o território para eles.” (Com informações do Portal Sumaúma)

Relacionados

Postagens Relacionadas

Nenhum encontrado

Cadastre-se e receba notificações de novas postagens!