EDITORIAL: Defensores de jovens golpistas sofrem da Síndrome de Estocolmo

A tendência de idealizar os fraudadores do Enem como heróis, num movimento perigoso de glamourização do crime, reflete uma forma de racionalização e negação da realidade
Eliésio Ataíde, André Ataíde e Moisés Assunção estão sob investigação da Polícia Federal e podem responder pelos crimes de falsidade ideológica, uso de documento falso e outros | Foto: Portal Debate/Reprodução

O recente escândalo envolvendo os jovens investigados pela Polícia Federal (PF) por fraudar o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), visando a ingressar no curso de medicina da Universidade do Estado do Pará (Uepa), campus de Marabá, desperta uma série de reflexões sobre a ética e a integridade no sistema educacional e na sociedade em geral. Enquanto esses indivíduos enfrentam acusações sérias e documentadas de fraude, uma parcela da sociedade opta por enaltecê-los, atribuindo ao mentor do crime, André Rodrigues Ataíde, de 23 anos, adjetivos como “gênio” e “brilhante”, e até mesmo comparação forçada ao personagem Mike Ross, da série Suits, da Netflix. Esse fenômeno, paradoxalmente, ecoa os padrões observados na Síndrome de Estocolmo, na qual as vítimas desenvolvem uma conexão emocional com os criminosos.

A análise psicológica da Síndrome de Estocolmo lança luz sobre os mecanismos subjacentes a essa defesa irracional. A sensação de desamparo e submissão extrema pode levar indivíduos a desenvolverem uma ligação afetiva com aqueles que os exploram, buscando enxergar bondade onde há apenas manipulação e desonestidade. Nesse sentido, a tendência de idealizar os fraudadores do Enem como heróis, num movimento perigoso de glamourização do crime, reflete uma forma de racionalização e negação da realidade.

A investigação conduzida pela Polícia Federal revelou fortes indícios de conduta fraudulenta, incluindo o uso de documentos falsos e o pagamento de quantias que chegaram à cifra de R$ 150 mil por prova para garantir a aprovação de indivíduos desqualificados, apontados pelas autoridades como sendo os elementos Eliésio Bastos Ataíde e Moisés Oliveira Assunção. Não bastassem as ações dos três jovens delinquentes comprometerem a integridade do segundo maior exame vestibular do mundo, as mesmas ainda suscitam sérias preocupações sobre a capacidade ética desses indivíduos, especialmente considerando a profissão almejada, cuja base é a ética profissional.

Nesta esteira, faz-se mister rememorar que a saúde pública brasileira já enfrenta desafios colossais, incluindo escândalos de corrupção, prescrições médicas influenciadas por interesses financeiros nefastos e má conduta médica, que certamente são a receita para a elevação ao nível de estatística das mortes de pacientes nos hospitais do País.

Diante desse contexto, a possibilidade de indivíduos desonestos exercerem a medicina é profundamente preocupante e pode representar uma séria ameaça ao bem-estar dos pacientes, devendo todos esses fatos serem rigorosamente considerados pela Universidade do Estado do Pará (Uepa) na decisão de suspender as matrículas dos três meliantes enquanto durarem as intensas investigações, que têm um alto potencial de revelarem ainda mais condutas ilícitas.

É lógico, os alienados passadores de pano virtuais, que sequer conseguem compreender o teor das investigações policiais, não têm a dimensão da gravidade do que estão, alguns até mesmo inconscientemente, endossando em suas redes sociais. A defesa cega e irracional desses golpistas reflete uma falta de empatia disparatada com as famílias de estudantes que batalham anualmente pelo sonho de ingressar no curso de medicina. Ao idealizá-los como heróis incompreendidos, esses paladinos dos “jovens bonzinhos vítimas da sociedade” ignoram o dano causado a inúmeras vidas, que tiveram a oportunidade de ingressar no ensino superior arrancada ardilosamente por quem não demonstra qualquer tipo de remorso ou arrependimento pela conduta, como o áudio de Moisés Assunção obtido pela PF denuncia.

A defesa virtual dos fraudadores do Enem é uma traição aos valores fundamentais da justiça e da honestidade. Em vez de celebrar indivíduos que desrespeitam a lei e a ética, devemos enquanto sociedade sensata rejeitar qualquer forma de apologia ao crime e exigir responsabilização por suas ações, ou no mínimo confiar no trabalho policial, em busca de alcançar o standard probatório necessário para levar à identificação de todos os possíveis ilícitos cometidos pelos envolvidos.

Não podemos ignorar ainda o fato de que a influência social e os privilégios desfrutados pelos jovens golpistas desempenham um papel ímpar na forma como são percebidos pela sociedade marabaense. Em uma cidade onde quase todos se conhecem ou já se ouviu falar de alguém, a reputação e a posição desses indivíduos conferem-lhes uma espécie de imunidade percebida. Seus atos ilícitos são suavizados pela condescendência de uma rede de contatos que se estende ao hight society e que muitas vezes se omite diante das transgressões cometidas por aqueles que pertencem ao mesmo círculo social, provando a insigne ideologia do corporativismo.

Em contrapartida, é difícil relegar nesta discussão o papel que a desigualdade social e econômica desempenha na percepção e no tratamento desses casos. Se os jovens fraudadores fossem pobres, moradores da periferia e desconhecidos, é quase certo que seriam rapidamente estigmatizados e condenados pelo tribunal dos formadores de opinião de Marabá.

Nesse cenário, a justiça não seria tão branda e as vozes clamando por punição seriam muito mais estridentes. A disparidade de tratamento revela uma realidade cruel, na qual a influência e os privilégios conferem uma espécie de imunidade seletiva, enquanto os menos favorecidos enfrentam o peso total da lei. Agora, resta-nos apenas torcer para que a justiça seja feita e para que as vítimas da Síndrome de Estocolmo em Marabá reajam em face de toda essa delinquência disfarçada de heroísmo.

A Editoria

Relacionados

Postagens Relacionadas

Nenhum encontrado

Cadastre-se e receba notificações de novas postagens!