Covid-19 não impede avanço da violência na Caxemira, zona mais militarizada do mundo

Nem a pandemia de covid-19 é capaz de frear a escalada de violência na Caxemira, vale ao sul da parte ocidental do Himalaia, disputado há décadas por Índia e Paquistão. Na última semana, autoridades indianas foram acusadas de usar leis de combate ao terrorismo para perseguir jornalistas.

Ao mesmo tempo, o governo promove enterros silenciosos de ativistas que lutam pela independência da região, impedindo as famílias de se despedirem dos parentes mortos.

A Caxemira está dividida por uma “linha de controle” que separa o vale em duas partes. As denúncias recentes de violência se concentram no lado indiano, onde há 494 casos confirmados do novo coronavírus e seis mortes por covid-19.

Do lado indiano, há um militar para cada seis caxemiris, totalizando 100 mil soldados – Rakesh Bakshi/AFP

Contexto

A divisão dos territórios da Índia e do Paquistão, chamada de “Partilha”, em 1947, vitimou ao menos um milhão de pessoas. A migração forçada e os massacres ocorridos dos dois lados aprofundaram os conflitos entre hindus e muçulmanos no sul da Ásia. Nenhum território expressa melhor a brutalidade daquele processo do que a Caxemira, área de maioria islâmica.

Além da disputa religiosa, a região é considerada estratégica do ponto de vista hídrico, porque abrange as nascentes dos principais rios da Índia e do Paquistão – Ganges e Indo, respectivamente.

Durante a Guerra Fria, o Paquistão recebeu apoio dos Estados Unidos e a Índia, da União Soviética. Ambos passaram a fazer investimentos no setor bélico, e hoje estão no seleto grupo dos nove países que têm armas nucleares, o que reforça as tensões na região.

Em 1989, uma revolta separatista fez abrir os olhos do Estado indiano para o risco de perder o controle político da Caxemira. A repressão intensificou-se imediatamente, resultando no assassinato de mais de 70 mil pessoas nos últimos trinta anos.

As principais vítimas são integrantes de movimentos que lutam pela independência da região. Do lado indiano, há um militar para cada seis caxemiris, totalizando 100 mil soldados. A região é a mais militarizada do mundo.

Em agosto de 2019, o primeiro-ministro Narendra Modi, da Índia, revogou a autonomia constitucional da Caxemira, conquistada em 1947, e cortou até o acesso à internet. Conexões 2G, com velocidade reduzida, voltaram a funcionar no mês passado.

Até hoje, os cerca de 400 jornalistas que atuam na região costumam enviar vídeos, fotos e reportagens por meio de dispositivos físicos, como pendrives e HDs, de avião para driblar a censura.

Perseguições

No último dia 18, a fotojornalista Masrat Zahra, de 26 anos, foi acusada com base na Lei de Atividades Ilegais por postagens com suposto conteúdo “antinacional” e “intenção criminosa” nas mídias sociais.

“Acredita-se que a usuária do Facebook esteja enviando fotografias que podem levar o público a perturbar a lei e a ordem. Ela também está enviando postagens que equivalem a glorificar as atividades antinacionais e a prejudicar a imagem das agências de aplicação da lei, além de causar descontentamento contra o país”, informou a polícia local.

No dia seguinte, Peerzada Ashiq, repórter do jornal The Hindu, foi acusado com base na mesma lei por registrar uma notícia “factualmente incorreta” que, segundo a polícia, “poderia causar medo ou alarme nas mentes do público”.

Menos de 24 horas depois, no dia 21, foi a vez do jornalista Gowhar Geelani ser denunciado pela polícia de “envolvimento com atividades ilegais por meio de seus posts e escritos nas mídias sociais”. Ex-editor da agência alemã Deutsche Welle, Geelani é autor do livro Kashmir: Rage and Reason [em português, Caxemira: Raiva e Motivação], sobre o desejo de independência dos caxemiris.

A comprovação de crimes descritos pela Lei de Prevenção a Atividades Ilegais pode levar a até sete anos de prisão na Índia.

Reação

O que há em comum entre os três correspondentes é a publicação de materiais jornalísticos que descrevem a atuação repressiva dos militares indianos na região.

“Apesar das alegações do governo de que tudo está melhorando na Caxemira, sua conduta continua sendo regressiva e o espaço para direitos civis, políticos e humanos está sendo sufocado ainda mais”, disse o ativista Khurram Parvez, da Coalizão da Sociedade Civil Jammu e Caxemira, em entrevista à rede Al Jazeera. Parvez definiu os episódios como “um ataque descarado ao direito à liberdade de expressão”.

Os três jornalistas foram interrogados e negaram as acusações. A organizações não-governamentais Anistia Internacional e Comitê de Proteção a Jornalistas (CPJ) também manifestaram preocupação e afirmaram que estão acompanhando os casos.

Correspondente do portal indiano Newsclick na Caxemira, Anees Zargar alerta que o momento é particularmente crítico em função da quarentena. Como as estradas e voos estão bloqueados, várias audiências e interrogatórios acabam ocorrendo sem a presença de advogados. Ao mesmo tempo, não há possibilidade de protestos ou manifestações de rua contra a censura na Caxemira, porque as aglomerações estão proibidas.

Zargar acrescenta que, com o pretexto de garantir o isolamento social, a polícia está agindo com ainda mais violência contra os caxemiris. “Moradores vem acusando as autoridades de usar força bruta até contra quem sai de casa para comprar itens essenciais, como alimentos. Médicos vêm relatando uso da força contra eles, e jornalistas também acusam a polícia de não permitir que façam seu trabalho”.

Enterros silenciosos

Dezesseis dos 50 assassinatos de ativistas independentistas caxemiris registrados em 2020 ocorreram durante a pandemia. Onze deles não tiveram sequer os corpos entregues às famílias. Para o governo da Índia, todos eram considerados terroristas.

Desde o início do mês, autoridades do lado indiano vêm realizando enterros silenciosos, na presença de um juiz, em cemitérios administrados pelo governo. Não há nenhum tipo de funeral, e as sepulturas sequer são identificadas.

Os funerais dos “mártires”, como são chamados pelos caxemiris, costumam reunir multidões cantando slogans anti-Índia e pró-Islã. A despedida é considerada um momento de honra e renovação do sentimento de luta pela liberdade.

O caso mais recente foi o dos ativistas Basharat Shah, Wakeel Dar, Tariq Butt e Uzair Butt, assassinados por tropas indianas há uma semana no distrito de Shopian, sul da Caxemira. Quando as famílias foram informadas das mortes, no dia 22, eles já haviam sido enterrados.

O argumento do governo da Índia para impedir os funerais é a necessidade de evitar aglomerações, por conta da pandemia.

Brasil de Fato

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