Candomblé: “Despachos” e oferendas não eram destinados a escravos fugitivos no Brasil

Tema ainda gera grandes debates Brasil afora.

Em junho de 2017, circulou muito pelas redes sociais um texto dizendo que a origem das oferendas nas encruzilhadas, prática comum nas religiões afro, tinha como o objetivo fornecer comida para os escravos fugitivos. Muita desinformação foi compartilhada a partir desta ocorrência, que se tratou de um infeliz equívoco: a postagem, que se tornou viral, foi escrita pela mãe do graduando em antropologia da UnB Lua Xavier após assistir a banca de seu TCC.

O problema é que, da forma como apresentado, o texto encontrou fácil eco no discurso daqueles que buscam despir as religiões afro de seu caráter sagrado. Ignora a simbologia das encruzilhadas em uma explicação funcionalista onde a prática religiosa existe com uma função objetiva e não transcendental – lugar relegado às religiões cristãs (como se, para atingir os mistérios, só rezando o Pai Nosso).

Seus praticantes, assim, parecem então meros reprodutores de um fazer esvaziado e sem sentido. Como escreve Marcelino Conti, da UFF, a história “nada tem de axé, nada tem de santo, são homens dando comidas pra outros homens”. O que isso significa? Que as oferendas podem então ser chutadas, criminalizadas, tratadas como lixo. Não tem mais sentido, afinal.

Em seu Facebook, Lua informa que pesquisou malabarismo no semáforo, apresentando o espaço como uma encruzilhada. Um espaço de Exu. O professor da banca, Leandro Bulhões, dissertou então sobre como poderia ter surgido um sistema de solidariedade a partir das oferendas na encruzilhada no Brasil colonial. E não necessariamente que a origem das oferendas seria essa.

Questionado sobre a forma como o texto foi escrito e a mensagem enviesada que transmite, Lua reagiu inicialmente com ironia, ressaltando o lugar de fala do professor enquanto negro (embora o problema apontado fosse no post, e não no pesquisador). Em um segundo momento, declarou:

“Andriolli, eu não me proponho a fazer uma crítica ao texto que tá rodando aqui, porque já existem muitas e são bem evidentes, porém, meu trabalho com esse post é ressaltar o contexto da história toda e deixar bem escuro que o professor Leandro não falou todas coisas que estão no texto, porque ele está sendo prejudicado”.

A mensagem segue sendo um tiro no pé, mas ao menos vemos que foi fruto de equívoco, não má vontade e nem racismo histórico, como se julgou nos primeiros momentos. Por sua vez, o professor Leandro Bulhões postou um texto onde esclarece o equívoco: má compreensão de uma ouvinte.

O texto que está circulando começa com “De acordo com o professor Leandro…”. Isso é perigoso porque alguém cita o meu nome, mas não fui eu quem o escreveu. Eu fiz uma fala pública e uma pessoa que me ouviu escreveu e publicou no Facebook um texto associando os meus argumentos a uma espécie de “história das origens das oferendas e da macumba”. Em seguida, ela aponta outras coisas de tal modo que não é possível fazer uma separação entre um tema que foi discutido em minha fala e depois as suas considerações próprias a respeito do assunto.

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Abaixo compartilho o texto do boato, seguido da perfeita reflexão de Luiz Antônio Simas sobre o tema:

Texto do boato
“De acordo com o professor Leandro (historiador da UnB) as oferendas deixadas nas encruzilhadas eram uma forma dos negros alimentarem seus irmãos escravos que estavam fugindo dos feitores. Os pretos escolhiam lugares estratégicos por onde escravos fugitivos passariam e colocavam comida pesada; carne, frango e farofa porque sabiam da fome e dos vários dias sem comer desses indivíduos e deixavam também uma boa cachaça pra aliviar as dores do corpo e dar-lhes algum prazer na luta cotidiana.

As velas eram postas em volta dos alimentos pra que animais não se aproximassem e consumissem o que estava reservado para o irmão em fuga e aí surge o que todos conhecem como macumba. O rito permanece sendo realizado pelas religiões afro como forma de agradecimento e pedidos aos seus ancestrais e em homenagem a seus santos. A cultura branca e eurocêntrica foi quem desvirtuou a prática, para causar medo, terror e abominação e reforçar os preconceitos e discriminações contra os negros.

Não tenho religião e não pratico nenhum culto mas gosto de saber que já houve tanta solidariedade no mundo e que as pessoas se preocupavam muito umas com as outras a ponto de fazerem um esforço pra alimentarem alguém mesmo sem conhecerem o seu rosto. Hoje vejo tanta gente em igrejas e igrejas em tantos lugares servindo apenas como instrumento de manipulação e exploração da fé alheia para manutenção do poder. Enfim nós não evoluímos.”

crossroads1986b

Luiz Antônio Simas

“Diante de um texto falacioso e fantasioso sobre ;oferendas nas encruzilhadas que está circulando na rede – que me parece ter a intenção de desqualificar as cosmogonias e crenças afro-brasileiras ao tirar das encruzilhadas as complexas atribuições de sentidos que os caminhos cruzados têm – reproduzo, com mínimas modificações, um texto que escrevi em 2014 para o jornal O Dia”.

ENCRUZILHADAS

As encruzilhadas são lugares de encantamentos para diversos povos e sempre espantaram e seduziram as mulheres e os homens. São ainda lugares propiciadores, em várias culturas, da realização de oferendas em busca da restituição do oferecido na forma de potências e sortilégios.

Os gregos e romanos ofertavam a Hécate, a deusa dos mistérios do fogo e da lua nova, oferendas nas encruzilhadas. No Alto Araguaia, era costume indígena oferecer-se comidas propiciatórias para a boa sorte nos entroncamentos de caminhos. O padre José de Anchieta menciona presentes que os tupis ofertavam ao curupira nas encruzilhadas dos atalhos.

O profeta Ezequiel viu o rei da Babilônia consultando a sorte numa encruzilhada. Gil Vicente, no Auto das Fadas, conta a história da feiticeira Genebra Pereira, que vivia pelas encruzilhadas fazendo oferendas às divindades e evocando o poder feminino.

Para os africanos, o Aluvaiá dos bantos, aquele que os iorubás conhecem como Exu e os fons como Legbá, mora nas encruzilhadas. Conta o povo do Congo que Nzazi imolou em uma encruzilhada um carneiro para fazer, esticando a pele do bicho num tronco oco, Ingoma, o primeiro tambor do mundo. Em quimbundo, o poder que comanda as encruzilhadas é o do inquice conhecido no Brasil como Bombogira. A origem do nome da divindade é Pambu-a-Njila: encruzilhada.

No universo fabuloso da música, dizem que Robert Johnson, um lenda do blues, negociou a alma com o Tinhoso numa encruzilhada do Mississipi. No Brasil caipira, há mitos sobre a destreza que alguns violeiros conseguiam ao evocar o sobrenatural num cruzamento de caminho.

O violeiro Paulo Freire (músico e historiador do instrumento) conta que um dos babados era enfiar a mão no buraco de uma parede de taipa de uma igreja deserta, localizada em uma encruzilhada, à meia-noite. Bastava então invocar o Sete Peles e sentir uma mão agarrar e quebrar todos os seus dedos. Após a recuperação das fraturas, o dom para fazer miséria com o instrumento iria aflorar. Para quebrar o pacto, o violeiro deveria virar devoto de São Gonçalo do Amarante, enfeitar o instrumento com fitas coloridas e mandar o Coisa Ruim de volta às profundas.

O fato é que a humanidade sempre encarou os caminhos cruzados com temor e encantamento. A encruzilhada, afinal, é o lugar das incertezas das veredas e do espanto de se perceber que viver pressupõe o risco das escolhas. Para onde caminhar? A encruzilhada desconforta; esse é o seu fascínio. Eu, que sou das encruzilhadas, desconfio é das gentes e das explicações do caminho reto. (Por Andriolli Costa)

Despacho com galinha preta em encruzilhada chama atenção de moradores no Morada do Sol
Crédito: Reprodução

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