Regulamentação das criptomoedas avança no Brasil

Projeto de Lei em tramitação não pretende regular os criptoativos, mas, sim, os players do mercado, ou seja, as empresas que trabalham no ramo e os usuários.
Crédito: Reprodução

O número de usuários de criptomoedas no mundo cresceu quase 180% no último ano. Em dezembro de 2021, 295 milhões de pessoas já faziam negócios com ativos virtuais. E essa marca pode chegar a um bilhão até o fim deste ano, caso o ritmo continue se intensificando.

Com a popularização de tais meios de pagamento — que são descentralizados e independentes do poder público —, surge naturalmente o debate sobre a necessidade de regulamentação. Isso já vem sendo discutido e abordado nos Estados Unidos e na Europa.

Aqui no Brasil, o Senado aprovou no mês de abril um projeto de lei que regulamenta a prestação de serviços com criptoativos. A expectativa é de que o texto seja votado pela Câmara em breve. O tema é sujeito a controvérsias e não faltam críticas ao PL, mas especialistas ouvidos enxergam a proposta como adequada.

PL em jogo

Em conformidade com os debates travados no resto do mundo, o texto aprovado pelos senadores foca em apresentar conceitos e diretrizes. Ele define ativo virtual como uma representação digital utilizada para pagamentos ou investimentos (por meios eletrônicos).

Já os destinatários da norma são os prestadores de serviços de ativos virtuais — aqueles que oferecem, por exemplo, uma carteira digital para criptomoedas ou um ambiente de negociação desses valores. Em essência, o projeto se refere às corretoras de criptoativos — as chamadas exchanges.

A proposta também indica que as atividades com criptomoedas devem seguir princípios como os da livre concorrência e livre iniciativa. No entanto, o funcionamento dependerá de um processo de autorização por parte do governo.

O problema é que não há detalhamento quanto a esse procedimento. Não se sabe ainda como ele será feito ou o que será exigido. O PL prevê apenas que o Poder Executivo escolherá algum órgão ou entidade da Administração Pública federal para criar uma regulação infralegal — ou seja, por meio de resoluções, instruções etc.

Senado aprovou PL com regulamentação dos prestadores de serviços com criptoativos – Leonardo Sá/Agência Senado

Objeto da proposta

Raphael Souza, advogado especializado em criptomoedas, faz uma observação importante sobre o PL. Segundo ele, a proposta — assim como todas ao redor do mundo — não pretende regular os criptoativos, mas, sim, os players do mercado, ou seja, as empresas que trabalham no ramo e os usuários.

De acordo com ele, não é o caso mesmo de tentar regular as criptomoedas, mas, sim, quem as utiliza. Regulamentar os ativos ou restringir seu uso seria impossível, pois se trata de uma tecnologia descentralizada: há servidores de bitcoin e ethereum no mundo inteiro. A situação é oposta à das moedas nacionais. Nesse caso, o dinheiro pode ser regulamentado, pois se sabe quem o emitiu (no Brasil, o Banco Central).

“Se eu quiser continuar utilizando o bitcoin sem uma corretora de criptomoedas, vou fazer isso tranquilamente e não há nada que o Estado, seja o brasileiro ou qualquer outro, consiga fazer”, afirma Souza.

Necessidade de regulamentação

Hoje o Brasil conta apenas com obrigações acessórias relacionadas a ativos virtuais. A Receita Federal já promoveu uma breve regulamentação das critpomoedas em 2019, para evitar a sonegação no setor. Uma instrução normativa determinou que as exchanges prestem informações sobre as operações com criptoativos: valores, tipos, quantidades, datas etc.

O professor e consultor em regulação financeira Isac Costa é defensor da ideia de que o Brasil precisa de segurança jurídica para o tema, mas não necessariamente na forma de uma lei. Para ele, a regulamentação poderia ocorrer por meio de normas da Receita, do Banco Central ou da Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

Mesmo assim, ele entende que a aprovação de um PL traz um pouco mais de segurança jurídica e tem um valor simbólico: “Para mostrar que o Estado brasileiro vê com bons olhos a prestação desse serviço de ativos virtuais”.

Alvos da proposta são empresas que trazem ambientes para operações com os ativos.

Se aprovada, a lei não produzirá efeitos de imediato. O texto do PL, além de estar sujeito a uma regulamentação posterior, estabelece um prazo de 180 dias para a norma entrar em vigor. Apesar disso, segundo o professor, os conceitos já estariam fixados para as instituições começarem a se organizar.

Raphael Souza também é favorável à regulamentação no Brasil e no mundo, principalmente porque ela pode evitar, ou ao menos dificultar, golpes e crimes — como a pirâmide financeira, um dos principais no ramo de criptomoedas. “Sem a regulamentação a gente não consegue excluir os players ruins do mercado, os criminosos”, destaca ele.

Além disso, uma regulamentação tem o potencial de atrair capital institucional. Grandes empresas, bancos ou fundos de investimento muitas vezes têm receio de explorar a área de criptoativos em razão da insegurança jurídica causada pela falta de normas.

Perspectivas sobre o PL

Para Isac Costa, a proposta aprovada pelo Senado poderia ser melhor, mas é positiva como um primeiro passo: “Ela pode não ser o que a gente precisa, ela pode não ser o que a gente quer, mas ela é o que a gente tem. E é melhor ter algo do que não ter nada”.

Ele ressalta que a regulamentação deve ser muito mais robusta e detalhada na Europa e nos EUA. “Mas, considerando a complexidade do processo legislativo brasileiro, os interesses em torno dessa proposta e todos os outros pontos, talvez seja o melhor que dá para fazer agora. Se não, vai demorar muito”.

No entanto, ele faz uma ponderação: a dificuldade de aplicar tal regulamentação, por causa dos prestadores de serviços estrangeiros que se negam a constituir empresa no Brasil. Algumas exchanges celebram parcerias com empresas brasileiras e disfarçam a prestação de seus serviços. Com isso, deixam de informar às autoridades sobre as transações.

Tal situação causa problemas em diversos níveis. Primeiramente, para o Estado brasileiro, que não tem controle sobre essas operações. Em segundo lugar, para o sistema financeiro nacional como um todo, devido às brechas para ingresso de recursos provenientes de negócios ilícitos.

Proposta prevê mecanismos para o governo averiguar saldos e transações.

Por fim, há danos aos empreendedores nacionais do mundo cripto. Alguns usuários podem não querer fazer negócios com uma exchange brasileira, pois ela estará sujeita à regulação. Assim, aqueles que desejarem se afastar do radar do Estado, inclusive para sonegar impostos e cometer crimes, optarão por exchanges piratas — estrangeiras que não cumprem a regulação. “Isso cria uma distorção concorrencial do mercado e prejudica a economia nacional”, opina Costa.

Raphael Souza vê o projeto como “bem completo”, mas teme que ele possa prejudicar a inovação na área de criptomoedas, bem como a criação e abertura de novas empresas. Isso porque as licenças necessárias para a prestação de serviços aumentarão os custos da atividade.

Outra preocupação é a privacidade a ser garantida pelo órgão centralizador. Para o advogado, a política de proteção de dados no Brasil ainda é muito ruim, e com isso surge a possibilidade de vazamento de informações dos investidores.

Vantagens

Na visão de Souza, um ponto positivo do PL é o estímulo à inovação e à concorrência. Ele explica que atualmente exchanges internacionais dominam uma parcela majoritária do mercado brasileiro, pois oferecem serviços que as corretoras nacionais não podem, a exemplo do empréstimo de criptomoedas. Se uma exchange brasileira oferece esse tipo de serviço, pode ser multada pela CVM, fiscalizada pela Polícia Federal e até obter problemas com bancos.

Outro princípio benéfico trazido pela proposta é a transparência, com maior acesso às informações. O advogado aponta que muitas exchanges não têm número de telefone ou mesmo escritório e só fornecem atendimento por e-mail ou chat instantâneo. “Isso é automatizado, não há informações claras e completas sobre o que está acontecendo”. Tal situação também dificulta a tomada de providências em casos de furtos.

Prevenção a crimes

Se na visão de Souza a diminuição dos golpes é uma das principais vantagens da regulamentação, Costa também entende que ela ajuda a “tirar a máscara” de certos participantes do mercado. Assim, se forem identificadas operações suspeitas, ao menos será possível pedir informações adicionais para tentar averiguar sua relação com eventuais crimes.

Lavagem de dinheiro é um crime comum no mercado de critpomoedas.

O professor ressalva que a regulação não permite, por exemplo, descobrir quem está por trás de transações ilícitas em casos de carteiras anônimas, nas quais apenas o usuário tem a chave. Entretanto, muitas dessas operações ocorrem em exchanges que terão de identificá-las e comunicar às autoridades. “Então, haverá um ganho em potencial no combate ao crime”, afirma ele.

Para além da conhecida pirâmide financeira, o advogado cita alguns dos crimes mais comuns no mercado, como o hackeamento, o phishing, o sequestro de investidores para entrega de criptomoedas e o ransomware — o bloqueio de dados com cobrança de resgate em ativos virtuais.

Em muitos desses casos, ocorre também a lavagem de dinheiro: os criminosos obtêm as criptomoedas de maneira irregular, passam por exchanges para “maquiá-las” e fazem o saque real em dinheiro. Por vezes, os criptoativos também são usados para tirar dinheiro do Brasil e colocá-lo em outro país, o que caracteriza o crime de evasão de divisas.

Para o advogado, se um órgão governamental tivesse relatórios sobre criptomoedas, como sugere o PL, seria possível comprovar os saldos, para identificação e averiguação de golpes. Além disso, as próprias exchanges teriam de se preocupar com a origem das movimentações que hospedam. Por fim, o investidor poderia conferir quais são as empresas autorizadas a trabalhar com ativos virtuais e ter “segurança de que foi feita uma investigação prévia”. (Portal Debate, com Consultor Jurídico)

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